Desde Freud, o pai da Psicanálise, não há uma divisão clara entre normalidade e patologia. Se Freud definiu a criança como um perverso-polimorfo foi mais para mostrar que a construção e o desenvolvimento do ser humano sofre um desvio das determinais biológicas e menos para afirmar que os adultos (pais, professores) sejam complacentes com a rebeldia infantil-adolescente.
Longe do pensamento romântico da modernidade, a infância, para Freud, se estendendo à adolescência, não é um período da vida de pura felicidade (1905). Antes, trata-se de um momento de intensos conflitos psíquicos, como mostraram mais especificamente as pesquisas de vários psicanalistas pós-freudianos: Melanie Klein, Donald Winnicott, Françoise Dolto e Maud Mannoni, para citar alguns.
Guardadas as devidas diferenças entre esses psicanalistas, é possível dizer que para a psicanálise, a saúde mental vai além da dimensão biológica do desenvolvimento humano, pois diferente dos outros animais, o equipamento inato com o qual a criança nasce, é insuficiente para lhe garantir a vida. É preciso um outro (um mulher-mãe, um homem-mãe) para cumprir as funções maternas. Esse outro é um ser falante (linguareiro), através do qual ela poderá aprender/apreender as coisas do mundo humano.
Humanizar-se, portanto, implica o desenvolvimento da criança num campo onde a importância da natureza só poderia aparecer em segundo plano. Desse modo, do ponto de vista psicanalítico não seria interessante corrigir as “deficiências” ou transtornos intelectuais, motoras e afetivas que se manifestam na escola, impedindo ou comprometendo o aprendizado, e sim construir possibilidades de expressão do sujeito.
Como disse Klein, o brincar é a linguagem própria da criança. Através dela, é possível trazer à baila o mal-estar que bloqueia muitas vezes a relação do aluno com o que lhe pode interessar no contexto escolar. O foco da Psicologia reduzido às habilidades e competências do desenvolvimento conduz, querendo ou não, a práticas de prevenção-intervenção que silenciam a história pessoal e social dos alunos, existentes por trás dos distúrbios manifestos.
Como afirma Vygotsky, sendo a escola uma criação social, que transmite conteúdos da cultura, é preciso que o aprendizado escolar seja baseado naquilo que define o desenvolvimento tipicamente humano, ou seja, nas vivências que correm dentro e fora do contexto escolar. Pois, a sobrevalorização do aspecto maturacional (faixa-etária), conduz o ensino ao lugar de espera. Ou seja, a um ensino retrospectivo e não prospectivo como ele defende.
Para o autor, a mente humana tem uma formação social. Ou seja, quando a criança chega ao mundo, já existe um conjunto de práticas e saberes acumulados historicamente que ela vai precisar se apropriar, implicando processos variados de interação entre desenvolvimento e aprendizado. Nesse sentido, o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) ganha muito valor operativo para o aprendizado escolar prospectivo. Pois neste, o aprendizado ocorreria dentro de uma relação de mediação aluno-aluno, professor-aluno, colocando em cena o valor da relação com o mundo simbólico, com a dimensão representativa das coisas da vida, já apontado pela psicanálise.
Dentro dessa perspectiva, aprender não vai coincidir com uma somatória de conteúdos acumulados ou armazenados no que chamamos de cérebro. É preciso lembrar que o enlaçamento social-afetivo não está localizado dentro de um órgão, como o cérebro. Por isso, a experiência da escolarização é extra-cerebral, poderia-se dizer assim. Daí, a Psicanálise afirmar que o psiquismo humano não é sinônimo de cérebro, embora não o dispense totalmente no entendimento acerca da saúde mental.
O psicanalista Alfredo Jeruzalinsky, por exemplo, separa os aspectos estruturais do desenvolvimento dos instrumentais. Enquanto estes são relativos ao aparelho biológico, que ligado ao sistema nervoso central pode tanto ampliar quanto limitar o desenvolvimento, aqueles consistem em possibilitar ou não as ações necessárias às certas atividades de movimento (olhar, pegar, falar etc.). Mas, observa o autor, eles estão situados no campo dos intercâmbios/trocas simbólicas entre a criança e o contexto de relações em que está inserida, constituindo o psiquismo humano como um todo, mesmo com seus avatares.
Urge, na nossa visão, a necessidade de olhar para a saúde mental na escola para além da abordagem fenomenológica dos transtornos mentais descritos pelo DSM-V, a qual alimenta cada vez mais, cabe destacar, o crescimento do número de encaminhamentos dos alunos a serviços de atendimentos especializados (como Psiquiatria, Psicoterapia, Neurologia e outros).
Estudos epidemiológicos no Brasil (2014) afirmam que 10 a 20% das crianças e adolescentes apresentam algum tipo de transtorno mental. Dentre eles, é apontado que 1 a cada 8 alunos (da Região Sudeste do Brasil) apresenta dificuldade na escola e precisam de atendimento especializado, fora das problemáticas da escola, destacamos aqui. O que dar a entender é que a saúde mental dos alunos deve ser tratada sem conexão com a escola, reduzindo as dificuldades de aprendizagem a déficits intelectuais, motores, sociais, que são transformados facilmente em números estatísticos, e onde o sujeito não aparece, portanto. Pelo menos não, no sentido do sujeito do desejo, do inconsciente, tal como visa a psicanálise.
A resultante disso é o domínio do tratamento medicamentoso que tem por efeito o fenômeno da medicalização da vida infantil-adolescente. Recai sobre o corpo físico a responsabilidade sobre o seu adoecimento psíquico e nada se pode dizer aí, no real do corpo, como diria Lacan. Lugar onde não foi possível o entrelaçamento com o simbólico e o imaginário.
Para concluir, afirmamos que não podemos, profissionais da Educação, abrir mão de refletir sobre a necessidade de pensar a saúde mental na escola a partir de outros paradigmas teórico-conceituais e metodológicos, indo além da Psiquiatria e Psicologia norte-americana que embasam hoje boa parte das concepções de desenvolvimento, gerando práticas adaptacionistas e acríticas de atuação do psicológico escolar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ESTANILAU, Gustavo M. Saúde mental na escola. Porto Alegre: Artmed, 2014.
FREUD, Sigmund (1905). Os três ensaios sobre a sexualidade.In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. 7.
JERUSALINSKY, Alfredo. Aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento. In: Escritos da criança, nº 4. Porto Alegre: Editora Lydia Coriat, 2001.
Profª. Drª. Francirene de Sousa Paula
Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário Ateneu
Doutora em Educação, mestra em Educação Brasileira e graduada em Psicologia
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