Do chão onde vivem as pessoas

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A cidade possui uma produção espacial repleta de cadeias e consequências que implicam na vida da C. Essa afirmação pode parecer óbvia, mas ela possui contornos complexos, sistemáticos e pelo que tudo indica, sem perspectiva de mudança a curto prazo. Porém, como as decisões e ações individuais podem levar a resultados em larga escala, cabe impulsionarmos, dentro da lógica urbana, decisões acertadas que promovam uma relação sadia entre o produto imobiliário e a cidade.

Decisões e consequências foi o campo de estudo do economista Thomas Schelling1, mas precisamente as escolhas muitas vezes individuais que trazem prejuízos não intencionados ou indesejados. Por exemplo, quando alguém se propõe a morar em um edifício cercado, buscando conforto e segurança, não deseja necessariamente gerar um padrão de áreas segregadas na cidade ou prejuízos nos espaços públicos, porém, é o que acaba implicando (NETTO 2016, p. 102). Ou seja, o muro que ele escolhe para se proteger não deveriam aumentar o risco de crimes nas ruas do entorno, mas é o que estes podem fazer ao desestimularem a presença de pedestres. Outro exemplo simples seria quando alguém pega seu veículo para ir ao trabalho. Certamente ele não deseja contribuir com o engarrafamento, mas assim o faz.

É relevante a abordagem de Schelling também na Arquitetura, uma vez que a decisão tomada por um incorporador imobiliário fazendo girar o sistema do capital interfere significativamente na produção do espaço coletivo. As situações nas quais o comportamento ou as escolhas das pessoas dependem do comportamento ou das escolhas de outras  são aqueles que geralmente não admitem um simples processo de soma ou extrapolação ao agregado. Para fazer essa  conexão, geralmente precisamos olhar para o sistema de interação entre individuo e seu ambiente (Schelling, 1978, p. 14).

Para Netto (2016), no contexto das nossas cidades, soma-se a essas dinâmicas de satisfação individual a partir  da escolha com consequências coletiva um forte sentimento de diferenciação social. O autor afirma que existe um potencial explosivo e silencioso para a segregação territorial. Mas temos motivações muito mais fortes do que aquelas que Schelling explica, como por exemplo, o medo da violência, a necessidade do status ou o puro preconceito de raça e de classe tantas vezes de fato silencioso.

Em um contexto assim, a segregação entra em uma dinâmica similar ao que outro economista, Gunnar Myrdal (1957), chamava de “causação circular e acumulativa”. O resultado é uma cidade fortemente fragmentada espacial e socialmente. O espaço territorial se torna uma forma de restringir os contatos entre os socialmente diferentes. E quanto maiores forem as forças segregadoras, mais evidentes, vulgares e violentos serão os recursos e dispositivos espaciais (como bairros murados) e técnicos (como câmeras, seguranças privadas etc.) para efetivá-las (NETTO 2016, p. 106).

Um ambiente urbano segregado, que ao longo do tempo vai se tronando o padrão empregado como modelo, não será facilmente corrigido. Diferente da economia, a cidade como organismo complexo está sujeita a mudanças a longo prazo e, exatamente por isso, demandam grande atenção e cuidado, uma vez que os atos da produção do espaço urbano demandam responsabilidade com seu futuro.

Portanto, a tomada de decisão assertiva e participativa através dos instrumentos urbano legais é fundamental no processo de desenvolvimento do espaço urbano. O planejamento participativo com todos os seguimentos da sociedade deve ser a alma de todo este processo. Porém, dentro deste sistema, quem está tomando as decisões? Em outras palavras, podemos perguntar, em que nível o Estado gerencia as decisões através da regulação, ações e instrumentos urbanísticos em favor da coletividade? Pois sabe-se que o produto imobiliário e seu mercado molda a cidade brasileira contemporânea, amparado legalmente por uma ampla legislação vigente.

Segundo Netto (2016), “dificilmente produtores do espaço teriam um plano deliberado para eliminar pedestres das ruas ou comércios dos bairros, induzir à dependência geral do veículo, ou contribuir para consequências negativas das emissões” (NETTO 2016, p. 101). Suas ações individuais podem até ter um objetivo positivo de desenvolvimento, mas suas consequências são devastadoras. Talvez porque as suas intenções muitas vezes focam o edifício isolado, ou mesmo, no novo produto imobiliário a ser comercializado. Muitos estudos constatam que o desenho da legislação se torna o meio garantido de uma Arquitetura desastrosa que nega a coletividade.

A forma urbana resultante da acumulação de soluções economicamente eficientes ao nível individual do produto imobiliário muito provavelmente não levará ao melhor desempenho urbano. Esta forma do mercado tornar a cidade um grande negócio visando essencialmente a acumulação de capital a partir de soluções a nível individual simplesmente deixa variáveis demais de fora, e um deles é o conceito de fruição pública, objeto desta pesquisa. E se nem todos os agentes estão conscientes das consequências oriundas de suas decisões individuais ou mesmo despreocupados, isso torna o problema muito mais difícil de solucionar.

 

 

Imagens – Foco objeto isolado x entorno
Fonte: Livro Cidade e Movimento – IPEA

A solução desta realidade não deve vir de um único ator, mas de todos os envolvidos, mas a principio, é inconcebível que aquele que deveria ser o gerenciador das ações individuais com consequências coletivas atue apenas como um simples parceiro muitas vezes de forma legal. O poder público, regido pelo o estatuto da cidade, deveria focar sua política urbana no objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade visando a coletividade, mas certamente, para isso, demanda uma mudança na percepção da edificação como produto imobiliário isolado a fim de mirar nas suas consequências coletivas. A cidade cresce e com ela a sua legislação. Mas ao final, o que vemos são leis sobrepondo uma enormidade de parâmetros que pouco ajudam na boa forma urbana de fato.

Bibliografia

ALBUQUERQUE, C. C. G. Regimes de exceção e viabilização das mais-valias imobiliárias: o caso das Operações Urbanas Consorciadas em Fortaleza – CE. Fortaleza. Mackenzie, 2015.
ARAUJO, C. Operações Urbanas Consorciadas no Brasil e o caso de Fortaleza. São Paulo, 2017.
ARAÚJO, Cristina. Terra à vista! O litoral brasileiro na mira dos empreendimentos imobiliários turísticos. Tese (Doutorado) Universidade de São Paulo. 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<ww.planalto.gov.br>. Acesso em 20 de abril de 2018.
CYMBALISTA, R. P., P. COBRA, P.SANTORO, P. A outorga onerosa do direito de construir após o estatuto.
NETTO, V. M. Cidade & Sociedade: As tramas da prática e seus espaços. Porto Alegre: Editora Sulina, 2014.
                  . The social fabric of cities. London: Routledge, 2016.
PEQUENO, R. (org.). Como anda Fortaleza. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2009.
SCHELLING, T. C. Models of segregation. American Economic Review, p. 488-493, 1969. (Papers and Proceedings n. 59).
VILLAÇA, F. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos Avançados. São Paulo, v. 25, n. 71, 2011.

1. Economista Vencedor do prêmio Nobel 2005.

Prof. Me. Eduardo Bezerra Gomes de Albuquerque
Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Ateneu
Mestre em Ciências da Cidade, tem MBA em Gestão de Projetos Integrados de Edificações e graduado em Arquitetura e Urbanismo

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