A violência doméstica no cenário da Covid-19 a partir de um recorte de raça, gênero e classe

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A violência contra a mulher pode ser abordada de diversas formas, seja violência de gênero, doméstica ou intrafamiliar. São conceitos que se diferenciam quanto ao espaço em que ocorreram, quem sofreu, quem cometeu e a forma que se procedeu a violência. Contudo, de forma geral, ressalta-se que é a organização social de gênero, e o patriarcado, que privilegiam o masculino e, pode-se dizer, dão a base e a sustentação para que essas violências sejam perpetradas.

Já entendida enquanto problema global, a violência doméstica e a violência por parte do parceiro atingem, mesmo que em diferentes níveis, mulheres de todas as classes sociais e diferentes formações culturais, educacionais, religiosas e profissionais. Dentre os fatores que podem ser afetados negativamente pela violência estão a saúde física, mental, sexual e reprodutiva das mulheres, além de aumentar a vulnerabilidade ao vírus da imunodeficiência humana (HIV).

Mesmo sendo democrática em sua possibilidade de atingir a todos, existem fatores associados ao aumento do risco de ser vítima de parceiros e de violência sexual. São eles: a baixa escolaridade, a exposição à violência entre os pais, o abuso durante a infância e atitudes que permitem a violência e a desigualdade de gênero. Além disso, pressupõe-se que em momentos de crise, com o intenso convívio da mulher com o seu agressor no ambiente doméstico, aumentaria o número de episódios de violência.

Esse cenário se apresenta a partir do alerta internacional sobre a Sars-CoV2/Covid-19 e a necessidade do isolamento social enquanto medida de segurança sanitária para minimizar a contaminação. Nessas circunstâncias, o isolamento social revelou esta outra problemática do campo social: as mulheres que passaram a estar confinadas com seus possíveis agressores de forma contínua, e muitas vezes sem outra possibilidade de sobrevivência.

Essa relação direta entre o isolamento social e a violência contra as mulheres logo passou a chamar atenção pela ampliação do risco e da vulnerabilidade a que elas são submetidas, especialmente, com a diminuição do suporte social decorrente do fechamento de creches, estabelecimentos de ensino e religiosos, e restrição ou redução de jornada de trabalho nos serviços de proteção à mulher, como delegacias e centros de referência à violência doméstica. Ainda em 2020, os dados dos canais de denúncias das plataformas do Ligue 180 e do Disque 100 revelam que houve mais de 105 mil denúncias de violência contra a mulher registradas. Desse total, 72% foram referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher.

No entanto, a rápida ligação entre o isolamento e a violência pode levar a leituras precipitadas de uma relação de causa e efeito, que é na realidade muito mais complexa. A partir do conceito de interseccionalidade, podemos refletir que a violência contra a mulher é atravessada por outros recortes além do gênero, sendo as questões de raça e classe também fundamentais para análise da vulnerabilidade e precarização da vida de determinadas sujeitas. Desta forma, a pandemia aparece mais como um catalisador que lança os holofotes para uma tragédia já anunciada, a intensificação da condição precária de mulheres já atravessadas por determinadas violências estruturadas pela pauperização, sexismo e racismo. São processos crescentes de vulnerabilização de corpos femininos, subjugados e objetificados, que têm nas bases coloniais desse país a formação de um lugar de violência e exclusão há muito tempo determinado.

Sabe-se que são desenvolvidas diversas ações para a promoção e proteção dos direitos humanos das mulheres pelo Estado brasileiro. Contudo, nota-se que as mudanças ainda não têm sido tão eficazes. O alarmante crescimento das estatísticas a cada ano prova isso. Refletindo o construto de violência contra a mulher, desde suas raízes históricas até as preocupações atuais com o enfretamento desta, percebe-se que a complexidade do problema se dá mediante o fato dessa violência ser incorporada e enraizada no imaginário social coletivo da sociedade como algo comum. Pois, a irrupção daquela se dá em um longo conjunto de subordinações e mascaramentos no qual são moldados estereótipos, preconceitos e discriminações que vão legitimando esses lugares sociais aos quais as histórias se repetem.

Esse estado de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres, e em especial as mulheres negras, só pode ser transformado a partir de uma ampla reestruturação que devolva a esses sujeitos um lugar de cidadania, que muitas nunca tiveram. Assim, compreender a complexidade em que se estrutura essa problemática da violência contra a mulher é compreender a amplitude do problema que tem de ser enfrentado enquanto formação da sociedade brasileira.

Profª. Amanda Karoline de Oliveira Ribeiro

Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário Ateneu

Mestranda em Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde, especialista em Psicologia Hospitalar e em Saúde da Família e Comunidade e graduada em Psicologia

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