A escola no caminho do sucesso: perigos da cultura da meritocracia no ambiente educacional

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Aparentemente, a despeito de pandemias, profundas crises econômicas, preconceitos estruturais, contradições e desigualdades sociais, estamos vivendo em uma realidade onde em que tudo é possível para aqueles que acreditam. O zeitgeist millennial traduzido pelo slogan multiuso “Foco, força e fé” impregna as mais diversas – e contraditórias – dimensões do corpo, do espírito e da mente do sujeito, desenbocando numa visão de bem-estar social como resultado da determinação individual e de felicidade legítima como consequência de planejamentos bem executados e decisões acertadas. Ou seja, a vida do indivíduo contemporâneo segue uma trajetória em grande parte delineada por suas próprias atitudes e empenho, e as possíveis interferências fortuitas que tendem a esburacar o caminho para o sucesso – procrastinação, inveja, conformismo, desemprego – podem ser minimizadas quando adotada uma postura inabalável diante dos infortúnios. Mas será que esta atitude self-made man é de fato saudável em todo e qualquer cenário social? No âmbito educacional, na sala de aula, por exemplo, a legitimação da ideia meritocrática subjacente ao pensamento do “eu sou responsável pelo meu destino” é, apesar dos custos, benéfica?

A onipresença de tal filosofia do sucesso pode ser facilmente percebida hoje nas listas de livros mais vendidos, nos números relativos aos compartilhamentos de vídeos que propagam esse pensamento, nas contas bancárias dos coachs e gurus experts na arte da excitação de espíritos resignados. Não é difícil entender o porquê do triunfo dessa postura existencial, visto que se trata de uma filosofia totalizante e extremamente maleável, que se adapta simultaneamente a áreas tão diversas da vida, como a do empreendedorismo e da religião; fluidez esta completamente adequada à tal Modernidade Líquida, conceito-grife do saudoso pensador pop Zygmunt Bauman. Porém, para além do plano (ou da rede) social no qual narcisismo, ambição e competitividade são vistos como virtudes morais inerentes à personalidade do vencedor, podemos observar uma crescente normalização, para não dizer incitação, dessa ideologia dentro do espaço educacional.

Concordando com a perspectiva freiriana – e mantendo viva a utopia do professor (ou a ingenuidade) – acredito que a escola deveria servir como preparação do aluno para a socialização, para ele agir na comunidade enquanto ser empático que busca contribuir em seu entorno a partir de um senso de coletivo. No entanto, não é de agora – mas o contexto atual oferece um terreno fértil para um crescimento mais robusto e veloz – que algumas instituições de ensino, principalmente, da iniciativa privada, assumem como diferencial de suas marcas a expertise em estimular a competição entre estudantes por meio de uma prática de hipervalorização de critérios avaliativos há muito superada pelas principais reflexões pedagógicas.

Notas em avaliações regionais, primeiras posições em concursos e vestibulares de renome são comumente publicizados em mídias tradicionais e digitais como se os jovens que alcançaram o êxito fossem mercadorias produzidas pela fábrica de gênios que é a referida instituição escolar. Toda esta pirotecnia, que – não nos iludamos – tem como principal finalidade angariar mais clientes-estudantes deslumbrados pela possibilidade de serem os prodígios – ou garotos-propagandas – da próxima temporada, acaba escamoteando a esmagadora maioria dos estudantes que não alcançam tais feitos, que simplesmente, com todos os percalços comuns da vida acadêmica, atravessaram o ensino básico sem estardalhaço, sem estampar um mísero outdoor num terreno baldio, e que, por estarem imersos contra suas vontades nesse contexto do “você não é o melhor porque não quer”, muitas vezes se frustram a ponto de terem suas vidas pessoais e profissionais prejudicadas.

Resumindo: a espetacularização do sucesso individual no âmbito escolar deturpa o sentido da prática pedagógica ao supervalorizar distinções entre estudantes e vender a exceção como regra. Este cinismo em franca ascensão no meio educacional, como vimos, deriva de uma postura comportamental mais ampla, fruto da condição pós-moderna e instrumentalizada por empresas, marqueteiros, falsos profetas, mídia etc., tornando cada vez mais irreconhecíveis as fronteiras entre tais campos. Logo, pensar a educação dentro do contexto do mérito e da competição é um projeto exitoso apenas para estabelecimentos que lucram com o capital simbólico advindo da diferenciação e com os benefícios financeiros derivados da distinção – entre instituições, alunos, resultados –; valores estes sempre determinados pelas práticas dessas mesmas instituições, em um jogo de soma não zero, no qual os diferentes setores envolvidos se retroalimentam a fim de manter a referida ideologia em plena circulação até exaurir o benefícios que dela pode surgir.

Vale a pena ilustrar, para concluir nossa reflexão, o papel de outro desses importantes setores, o da mídia, que, assim como as escolas-empresas já citadas, sempre que possível recorre ao tema “educação e força de vontade” em busca de manter sua relevância na festa da idolatria ao mérito. A forma mais comum de desfrutarem deste produto é através daquelas já tradicionais reportagens inspiradoras sobre adolescentes, jovens e idosos em condições de vida precárias que, apesar de todas as dificuldades, conseguem entrar em um prestigiado curso superior ou lotar uma vaga de concurso público bastante concorrido através de um esforço individual quase sobrenatural – muitas vezes estudando de madrugada após trabalhar o dia todo; catando livros no lixo e resolvendo exercícios sem auxílio de professor; assistindo a aulas pelo celular enquanto cuidam de vários filhos e da casa etc. São conquistas incríveis e devem ser valorizadas, sem dúvidas. O problema é quando tais exceções são propagadas à exaustão e acabam se transformando em base de argumentos que defendem a dedicação pessoal como a chave do sucesso, insinuando que qualquer um pode chegar aonde quiser bastando se esforçar.

Não podemos acreditar nisso, pois, se aceitarmos tal tese como verdadeira, consequentemente estaremos aceitando que milhares de crianças e adolescentes – também recorrentes “estrelas” de reportagens sensacionalistas – esquecidas nos rincões mais inóspitos do Brasil e que precisam caminhar dezenas de quilômetros diariamente, atravessando lama, pedras, terra batida, a fim de assistir a aulas numa “escola” caindo aos pedaços, quase sem paredes para suportar uma lousa pequena, e, que, em casa, ainda não possuem, quando não comida, o material mínimo para realizar uma tarefa, só continuam nessa situação por lhes faltarem “foco, força e fé”.

 

Prof. Ms. Jivago Oliveira da Fonseca

Docente do Curso de Pedagogia do Centro Universitário Ateneu

Mestre em Letras e graduado em Letras – Língua Portuguesa

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