Inteligência natural e direito

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O viajante que percorre o litoral do Ceará, apreciando a sua paisagem natural e humana, algo fora de moda – o mais comum é dispersar o tempo zapeando redes sociais ou estilizar fotos em busca de interações nem sempre tão espontâneas – sem dúvida, irá se deparar com um de nossos tipos mais característicos, a mulher rendeira. Ela resiste ao lado de sua almofada de bilros, embalada pela musicalidade solene de tais objetos, às vezes tocada na face pelo frescor dos alísios alencarinos, conjuntura rara, mormente quando estamos diante do bafo abrasador do aquecimento global.

A destreza, cadência e lógica própria dos movimentos urde um assustador cipoal de linhas sobre o papelão cravejado de espinhos de mandacaru ou alfinetes, gestando, ao final de horas de trabalho, uma das mais belas e inconfundíveis peças do nosso artesanato, a renda de bilros. Nos inventários do período colonial, processados nas plagas cearenses, a habilidade era tida como distintivo de boa educação das menores órfãs e indício aferível do conceito de “civilização” à época vigente.

Mas o que isto tudo tem a ver com o Direito? Sem dúvida, a iminência das alternativas e facilidades trazidas pela Inteligência Artificial colocam em xeque a construção da ciência e pragmática jurídicas tal qual há séculos as conhecemos. O fator humano parece fadado a sucumbir diante da ditadura dos algoritmos, como a renda de bilros estava condenada a desaparecer face aos avanços da indústria têxtil. No entanto, “cada coisa tem o seu lugar. Que o digam as pirâmides do Egito”, já nos alertava Clarice Lispector.

A Inteligência Artificial veio para ficar. Isso é fato indiscutível. No entanto, devemos sempre adjetivá-la e tratá-la como instrumento, jamais como a timoneira da missão. No máximo, cabe a ela a mesma função do papelão na almofada de bilros, um roteiro básico, estéril e facilitador da explosão da essência do ser humano. É da inteligência natural que emana a criatividade e, no caso do Direito, o ideal de justiça. Afinal, “são com os fios invisíveis do Direito que se faz as civilizações”, como diria o inolvidável jurista Pontes de Miranda. Temos certeza que o mestre alagoano admirava o trabalho das mulheres rendeiras de sua terra.

Prof. Dr. Ronald Ferreira dos Santos Gomes Tavares
Docente do Curso de Direito do Centro Universitário Ateneu.
Doutor e mestre em História, especialista em Arqueologia Social Inclusiva e em Direito Público e graduado em Direito.

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