A imparcialidade judicial é a autêntica condição de possibilidade do exercício da jurisdição. Em sua ausência, o processo não se constitui, o procedimento não se desenvolve e o julgamento não se legitima, nem se faz formalmente justo sob nenhuma hipótese. Corresponde a um direito subjetivo fundamental de liberdade, que se reconhece, dentre as garantias constitucionais do processo, aquela que pressupõe, fundamenta e viabiliza a observância de todas as demais.
Dizer que é um juiz é imparcial é como afirmar que o fogo é quente, ou que água é molhada. Traduz um pleonasmo vicioso, ou uma repetição inútil de ideias. Um juiz parcial pode ser tudo, menos um juiz. É simulacro de democracia; é, senão, um litigante disfarçado, ou um contraditor fantasiado de toga.
Efetivar a imparcialidade, no entanto, não é algo propriamente simplório. Longe disso, aliás, inúmeros fatores na prática dificultam essa tarefa, encaminhando um inadequado tratamento do tema no campo normativo, cuja justificativa, em grande parte, decorre de uma falha e sistemática de percepção. Trata-se de uma resistência tradicional em se compreender a imparcialidade não como um conceito facilmente regulável pela dogmática jurídica, mas sim como um dado da realidade psíquica, insuscetível de controle e de mediação pela ciência do direito.
Sob tal enfoque, o que faz de um juiz parcial não é (apenas) a sua intenção deliberada ou presumida de favorecer umas das partes, mas a sua inevitável permeabilidade a influxos do inconsciente, os quais, por que situados em uma dimensão anímica não voluntária, ressurgem inalcançáveis, a priori, pelo eixo de regulação das regras processuais ordinárias.
Contudo, a legislação em vigor parece vislumbrar apenas os casos em que a imparcialidade é aferível por critérios objetivos, tais como parentesco ou amizade do juiz com as partes, sua eventual atuação prévia em outras fases do processo no processo, e seu conhecimento anterior dos fatos e da causa. É o que se depreende, a propósito, de uma leitura tanto do art. 254 do CPP/41, quanto dos arts. 144 e 145 do CPC/2015.
Não obstante, em que pese essa disjunção entre a realidade e o direito posto, impõe-se repensar o atual sistema para agregar às hipóteses já previstas de suspeição e de impedimento, situações em que a quebra da imparcialidade decorra de fatores intuitivos ou espontâneos, capazes de afetar o equilíbrio e a racionalidade judicial, comprometendo a higidez do processo como uma instituição de garantia.
Um primeiro passo nessa direção é superar a perversa cultura da identidade/unicidade física do juiz, rompendo com o mito do julgador super-herói e onipotente, a quem se permite dirigir sozinho a cena processual desde a admissibilidade formal da demanda até a prolação da sentença de mérito. Propõe-se, em contraponto, um modelo de divisão funcional escalonada de competências, a exigir juízes diferentes “para cada uma das mais relevantes etapas procedimentais, ou seja, um juiz para a urgência, um juiz para o procedimento probatório, e, finalmente, um juiz para o decreto da sentença definitiva”.
Além de naturalmente ampliar os níveis de fiscalidade do procedimento, uma vez que as deliberações serão resultado do labor não de um só, mas de vários julgadores em mútua fiscalização permanente, tal formulação propicia uma redução acentuada das chances de contaminação judicial por agentes de distorção cognitiva, mediante a diluição do protagonismo decisório entre autoridades diversas.
Assim, ao tempo em que os juízes das fases iniciais são dados a decidir sem que tenham tido nenhum contato anterior com os fatos da causa, o que os preserva de contágios fáticos, o juiz da sentença, como não foi o mesmo que oficiou primeiramente, pode, com certa imunidade de convicção, desempenhar seu ofício sem se acometer de preconcepções subjetivas capazes de macular seu entendimento.
Prof. Me. Lincoln Mattos Magalhães
Docente do Curso de Direito do Centro Universitário Ateneu
Doutorando em Direito Constitucional, mestre em Processo e Direito ao Desenvolvimento, especialista em Direito Processual Civil e graduado em Direito
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