Com a pandemia do novo coronavírus, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, temos vivido muitas mudanças, desde aquelas ligadas à rotina pessoal àquelas relacionadas às dinâmicas sociais mais amplas. A fim de controlar a rápida transmissão do vírus e o número alto de mortes, temendo ainda um colapso nos sistemas de saúde, a OMS, junto a instituições nacionais, declararam várias medidas de biossegurança, a serem assumidas por todos, como o uso de máscaras e o distanciamento social.
Com essas mudanças, para quem era possível, se fez necessário manter-se em casa e sair apenas para resolver assuntos essenciais, como, por exemplo, comprar alimentos e medicamentos. O trabalho e a escola passaram a ocupar também o espaço doméstico, com um uso intensificado das telas do computador e smartphones. Com as pesquisas científicas foi possível desenvolver, em tempo recorde, várias opções de vacinas, que surgem como uma estratégia coletiva de enfrentamento eficaz da pandemia, diminuindo os casos graves e moderados e, consequentemente, o número de internações e mortes. Essas mudanças atingiram a todos que, de alguma forma, se conectam à nova realidade vivida coletivamente, incluindo as crianças. Assim, não poderíamos deixar de lado esse grupo etário, ouvindo e considerando suas demandas e sentimentos em meio às vivências em um período pandêmico.
É claro que, quando falamos em “crianças”, não podemos dizer que as vivências pandêmicas são iguais para todas, pelo contrário. Crianças vivem infâncias diferentes e, por vezes, desiguais. Se consideramos nosso país, o Brasil, são desigualdades proporcionais ao seu tamanho continental. Portanto, trago aqui algumas ideias a partir de notícias e publicações científicas que versam sobre as vivências das crianças durante a pandemia, no Brasil, embora pudesse ser bem mais interessante e rico trazer diretamente suas próprias expressões e opiniões.
Na educação, houve o fechamento das escolas por um longo período e posterior reabertura pautada pelos protocolos de biossegurança. No entanto, a escola não se restringe a ser um espaço de ensino e aprendizagem concentrados na sala de aula, mas, sim, um lugar de convivência, de encontrar os amigos para brincar e deparar-se com situações diversas. Assim, para além da sala de aula, que tentou-se transportar para a tela do ensino remoto, na escola tem o recreio, com a merenda (que para muitas crianças era a principal refeição do dia) e as muitas brincadeiras.
Além da escola, como lidar com as crianças o tempo todo em casa? Haja atividade para entretê-las, sim? Sem falar que nem todos dispomos de casa com espaço para as atividades das crianças, e mesmo com o direito ao saneamento básico atendido. Assim, como manter a higiene necessária para não transmitir/contaminar-se se falta água encanada e sistema de esgoto? Ou mesmo como manter as crianças entretidas em casa se são várias pessoas em uma pequena casa de um cômodo só? Quantas crianças ficaram sem casa durante a pandemia? Ademais, quem cuida das crianças que ficam em casa se os adultos cuidadores precisam se ausentar para trabalhar, ou seja, não podem fazer o isolamento social rígido e trabalhar “de casa”? Desse modo, as desigualdades, que estão na estrutura social do nosso país, foram escancaradas: se algumas crianças poderiam ter o que comer, como se proteger, como estudar remotamente, restando, ainda, inventar atividades para encarar o tédio ou mesmo lidar com questões emocionais, outras crianças entraram (ou retornaram) no mapa da fome, por exemplo.
Dentre as várias situações graves envolvendo as crianças na pandemia, destacam-se as crianças que se tornaram órfãs devido à Covid-19. No Brasil, são milhares de crianças órfãs por terem perdido o pai, a mãe, ou ambos, assim como avós que desempenhavam o papel de responsável cuidador. No entanto, cabe lembrar que, conforme a Constituição Federal de 1988, é dever da família, da sociedade e do Estado garantir os direitos de crianças e adolescentes brasileiros. Que ações e iniciativas têm sido desenvolvidas para a garantia dos direitos das crianças brasileiras órfãs da Covid-19? Como fica o acesso à escola e à saúde destas crianças? Como elas estão vivendo?
Ressaltamos ainda a importância da vacinação infantil. Como uma estratégia coletiva de enfrentamento e proteção, a vacina precisa chegar a todos, incluindo as crianças. No Brasil, a vacinação de crianças tem historicamente colocado o país e seu Sistema Único de Saúde, o SUS, em destaque devido à qualidade e eficiência das campanhas e programas de vacinação e erradicação de doenças na infância. Por que as crianças ficariam de fora justamente nesse contexto trágico de pandemia? As crianças também precisam sair de casa, conviver, ir para suas atividades, brincar, voltar para a escola. E é dever nosso, como família e sociedade, assim como do Estado, garantir que as crianças estejam protegidas para voltar a brincar, estudar e desenvolver-se com saúde e oportunidades.
Fica então o convite: vamos escutar o que as crianças nos têm a dizer sobre suas vivências na pandemia, considerar suas necessidades e sentimentos e assumir nosso compromisso de cuidar e facilitar seu crescimento?! Delas depende o nosso futuro, mas com elas já vivemos o presente, que justamente a pandemia nos fez ver como é tão valioso!
Profª. Drª. Lis Albuquerque Melo
Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário Ateneu
Doutora, mestre e graduada em Psicologia. É psicóloga e psicoterapeuta, com referencial humanista e, da graduação ao doutorado, pesquisa e trabalha, principalmente, com crianças e sobre as infâncias.
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