Cícero trouxe da Roma antiga a alegoria de Dâmocles, cortesão que invejava o poder do rei. Ao sentar-se no trono, descobriu sobre si uma espada presa apenas por um fio de cabelo, percebendo que o poder não era sinônimo de prazer, mas de constante risco. Essa metáfora ecoa no papel das redes sociais, ao mesmo tempo em que oferecem possibilidades inéditas de comunicação e exercem também forte pressão sobre as democracias contemporâneas.
As redes sociais revolucionaram o modo como a humanidade compartilha informações e conecta culturas, mas há muito deixaram de ser meros espaços de entretenimento. Tornaram-se elementos estruturais da vida política e econômica, com capacidade de moldar opiniões, eleições e políticas públicas. Essa é a espada de Dâmocles que hoje paira sobre a democracia.
A discussão sobre a regulamentação das plataformas digitais no Brasil reflete uma preocupação global. Governos do mundo inteiro buscam respostas para o poder concentrado das chamadas big techs, que controlam os fluxos de informação em escala planetária. Antes vistas como arenas de pluralidade, as redes se converteram em terreno fértil para a disseminação de desinformação, discursos de ódio e ataques à ordem democrática.
O sociólogo Manuel Castells já havia advertido que as identidades contemporâneas seriam construídas a partir de atributos culturais comuns, não mais limitados pelo espaço físico. Entretanto, a congregação orgânica dessas identidades foi substituída pela lógica algorítmica. São os algoritmos, e não os indivíduos, que hoje determinam a visibilidade das informações, priorizando conteúdos que geram engajamento e maximizam lucros publicitários.
Plataformas como Facebook, Instagram, X e TikTok se tornaram mediadoras da esfera pública. Dirigem o que os usuários veem, reforçando interesses semelhantes e sugerindo novos conteúdos a partir de padrões de comportamento. Esse controle matemático artificial cria ambientes em que fontes confiáveis perdem espaço e conspirações ganham status de verdades possíveis, transformando divergências de opinião em narrativas antagônicas e irreconciliáveis.
A consequência direta é a formação de bolhas informacionais e câmaras de eco, onde interações artificiais substituem o debate humano e reduzem a complexidade social a “tribos informacionais”. Nessas condições, a opinião pública deixa de ser resultado de deliberação livre para se tornar produto do desenho algorítmico que visa apenas reter a atenção dos usuários.
Não faltam exemplos do impacto político dessa dinâmica. Em 2016, o caso Cambridge Analytica[1] revelou a violação massiva de dados de usuários do Facebook para favorecer a campanha de Donald Trump. Na Hungria, Viktor Orbán consolidou a sua liderança explorando as redes para mobilizar bases extremadas e reforçar discursos nacionalistas. No Brasil, as eleições de 2018 e 2022 foram marcadas pelo uso massivo de desinformação digital, ataques às urnas eletrônicas e apelos à desobediência civil, com claro impacto sobre a estabilidade institucional.
Esse fenômeno afeta também o jornalismo tradicional, obrigado a reagir à enxurrada de conteúdos virais para desmentir falsidades que já se espalharam em escala exponencial. Por isso, surgiram iniciativas de checagem e até mecanismos dentro das próprias plataformas para identificar notícias falsas. No entanto, o ritmo da propagação ainda supera em muito a capacidade de correção.
Embora sejam produtos humanos, os algoritmos operam em velocidade e escala que lhes conferem aparência de autonomia, agora potencializada pela Inteligência Artificial. Isso cria um ciclo em que narrativas falsas se multiplicam antes que possam ser desmentidas, afetando diretamente o cotidiano político e social. Diante desse quadro, a regulamentação das redes sociais não pode ser confundida com censura.
Regular não significa calar, mas assegurar que o debate público não seja sequestrado por interesses obscuros, protegidos pelo anonimato e pela impunidade. O desafio brasileiro – compartilhado por outras democracias – é encontrar um equilíbrio entre responsabilização e preservação da liberdade de expressão.
A construção desse marco regulatório deve combinar medidas normativas, como transparência algorítmica, relatórios públicos de moderação e instâncias independentes de fiscalização, com investimentos em educação midiática e fortalecimento da cidadania digital. Assim, o país poderá reduzir os riscos de captura política da regulação e, ao mesmo tempo, limitar o poder opaco das plataformas.
O dilema nacional não é apenas entre liberdade e controle, mas entre deixar que a democracia seja refém de sistemas automatizados ou assumir o dever de garantir que a esfera digital seja democrática, plural e responsável. A regulamentação das redes sociais representa, portanto, não uma ameaça, mas uma etapa necessária de amadurecimento institucional para que a espada de Dâmocles não se transforme em sentença contra a própria democracia.
Referências:
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CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Volume I. Tradução: Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
D’ANCONA, Matthew. Pós-verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de fake-news. Tradução: Carlos Szlak. Barueri: Faro Editorial, 2018.
DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. Tradução: Arnaldo Bloch. 4. ed. São Paulo: Vestígio, 2022.
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução: Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Editora Vozes. 2022.
MCINTYRE, Lee C. On Disinformation. Londres, MA: MIT Press, 2023, ePub Version 1.0.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução: Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Editora Schwarcz. Livro eletrônico.
NETLAB UFRJ. Ameaças à segurança da votação. 29 de Setembro de 2022, Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
PERSILY, Nathaniel.; TUCKER, Joshua A. et. al. Social media and democracy: the state of the field, prospects for reform. doi: 10.1017/9781108890960. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2020. Livro eletrônico.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Democracia e Códigos Invisíveis: Como os algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políticas. São Paulo: Edições SESC SP, 2019.
TIMBRO. Authoritarian Populism Index 2024. Abril 2024. 308p. Epicenter. European Policy Information Center. Disponível em: https://www.epicenternetwork.eu/publications/timbro-authoritarian-populism-index-2024/. Acesso em 25 jul. 2024.
Prof. Me. Diego dos Santos Lira Pereira
Docente do Curso de Direito do Centro Universitário Ateneu.
Mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Processual Civil e graduado em Direito.
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[1] A empresa teve como vice-presidente Steve Bannon, um famoso spin doctor que trabalhou para Donald Trump e diversos outros políticos da extrema-direta no mundo. As campanhas de propaganda e desinformação da empresa também influenciaram o movimento do brexit no Reino Unido.