Em termos de dados oficiais, o Censo feito em 1973 apontou que Fortaleza tinha 81 favelas ocupadas por cerca de 35 mil famílias. Em 1991, esses números passaram para 314 assentamentos precários, os quais abrigavam 108 mil famílias. Em seguida, o mais recente levantamento feito em 2012, através do plano local habitacional de interesse social contabilizou 843 assentamentos urbanos precários, onde vivem aproximadamente pouco menos de 300 mil famílias, representando mais de 42% da população do município, ocupando aproximadamente 11% do território em condições de coabitação, precarização extrema da unidade habitacional e da sua vizinhança. Uma ocupação desconcentrada, ainda predominante periférica, em áreas de grande fragilidade ambiental ou mesmo de risco potencial aos ocupantes.
São comunidades cujas dinâmicas relacionadas à cultura política e a organização social vem sofrendo profundas transformações nos últimos 20 anos. Mudanças que são consequência de determinados fatores, dentre os quais:
– O aumento das precariedades vividas pelas lideranças/moradores no âmbito do trabalho e da renda, que agora foram agudizadas pela pandemia da Covid-19;
– O enfraquecimento crescente da ação mobilizadora e organizativa (histórica) das instituições ligadas à Igreja Católica, das organizações não governamentais (ONGs), inclusive, do próprio movimento social (associações de bairro e sindicatos);
– As gestões públicas que promoveram forte cooptação das lideranças comunitárias e de movimentos organizados, os quais passaram a assumir cargos nos órgãos municipais, sem deixar de atuar nas instâncias da base comunitária, enfraquecendo o poder crítico, questionador e reivindicador; o surgimento de novas estruturas de organização e poder, representadas pelas igrejas evangélicas e mais recentemente, pelas facções do tráfico de drogas; e o aumento da violência do Estado, sobretudo, nas ações policiais, como nas remoções ou ameaças de despejos.
Nestes últimos casos, o cenário desenhado por estudos realizados pelo Observatório de Remoções sediado no Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab/UFC) e que compõe a Rede Observatório das Metrópoles do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia () é bastante preocupante: num período de dez anos (início de 2009 até junho de 2019) de denúncias junto às instituições de direitos humanos locais, totalizam-se 340 denúncias de ameaças, das quais 155 terminaram em remoção. Os resultados revelam que mais da metade dos relatos trazem a existência de atos violentos; e em cerca de 48%, os denunciantes alegam não ter sido apresentada ordem judicial ou ato administrativo.
Apesar desse cenário complexo e permeado por todo tipo de exclusão e violência, historicamente existem lideranças, muitas moradoras da “Cidade da Favela”, que se organizam e tem feito movimento social autônomo legítimo e questionador em Fortaleza. Sendo que muitas, senão todas, as poucas conquistas locais em prol do acesso ao Direito à Cidade são fruto da ação política dessas pessoas. As Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) inseridas e demarcadas no Plano Diretor de Fortaleza (PDPFor/2009) foi uma dessas conquistas e que, mesmo de forma limitada e ameaçada, tem se colocado como um ponto de inflexão na relação Estado-Capital e seu processo de implementação de uma cidade, espaço de expansão infinita de uma mais valia imobiliária também infinita para a riqueza e usufruto de poucos em detrimento da segregação involuntária e da degradação socioambiental de muitos.
Durante os quase sete anos do processo de revisão do Plano Diretor (PDDU/1992) e promulgação do PDPFor/2009, o instrumento Zeis se tornou foco estratégico das reivindicações da sociedade civil, pois além de um forte mobilizador da população mais vulnerável, trata-se do instrumento que reúne quase todos os mecanismos de indução ao desenvolvimento local e urbanização sustentável de áreas de favela (historicamente excluídas). Estamos novamente em pleno processo de revisão do Plano Diretor, principal definidor da localização e forma de aplicação das Zeis e outros instrumentos importantes ao desenvolvimento inclusivo e ambientalmente adequado do município.
Enquanto processo obrigatoriamente participativo, tem-se pouca informação sobre como está se dando a participação de segmentos importantes da sociedade civil no processo. E, principalmente, como estão participando os movimentos de base popular, lideranças comunitárias, moradores e moradoras da “Cidade Favela Fortaleza”? E nós, classe média detentora de conhecimento e formadora de opinião, como estamos participando? Ou mais uma vez vamos deixar essa população vulnerabilizada lutar sozinha pelo direito de existir, de morar e usufruir as benesses da cidade?!
Profª. Drª. Joisa Maria Barroso Loureiro
Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Ateneu
Doutora em Planejamento Urbano e Regional, mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente e graduada em Arquitetura e Urbanismo
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