Assincronia paciente-ventilador: um desafio negligenciado na ventilação mecânica

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A ventilação mecânica invasiva (VMI) revolucionou o cuidado ao paciente crítico, permitindo suporte respiratório em diversas condições clínicas agudas. No entanto, um desafio persistente e muitas vezes subestimado compromete a sua eficácia: a assincronia paciente-ventilador. Apesar de seu impacto direto em desfechos clínicos, como prolongamento do tempo de ventilação, disfunção muscular respiratória, piora da qualidade do sono, dispneia e até aumento da mortalidade, a assincronia ainda não recebe a devida atenção na prática clínica diária.

A assincronia representa o descompasso entre o esforço respiratório do paciente e a assistência oferecida pela máquina. Este desacoplamento pode ocorrer em qualquer fase do ciclo respiratório – seja no disparo, no fluxo ou na ciclagem – e suas causas envolvem desde parâmetros mal ajustados até alterações fisiológicas do paciente. O disparo ineficaz, por exemplo, é o tipo mais comum e pode estar relacionado à hiperinsuflação dinâmica ou fraqueza muscular. Já o duplo disparo e o disparo reverso revelam uma disputa por controle entre paciente e máquina, frequentemente impulsionada por sedação excessiva.

É importante destacar que a detecção das assincronias não depende apenas de tecnologia avançada, mas de uma observação clínica criteriosa e do conhecimento aprofundado sobre as curvas do ventilador. O toque no tórax, a escuta atenta e a análise minuciosa das curvas de pressão, fluxo e volume ainda são essenciais para o fisioterapeuta e o intensivista. No entanto, a ausência de estudos clínicos robustos que testem intervenções específicas na correção dessas assincronias tem sido uma barreira para transformar conhecimento em condutas padronizadas.

Frente a isso, surge uma inquietação: por que um fenômeno tão prevalente e prejudicial é tão pouco enfrentado com rigor científico? Parte da resposta pode residir na falsa ideia de que a ventilação mecânica moderna, por si só, garante sincronia perfeita. Além disso, há uma sobrecarga de demandas no ambiente de terapia intensiva, o que pode tornar a análise das assincronias um “luxo” relegado ao segundo plano.

No entanto, defender o enfrentamento da assincronia é, acima de tudo, defender o cuidado centrado no paciente. É urgente que os profissionais da saúde assumam a responsabilidade de rastrear, classificar e corrigir essas disfunções. Mais ainda, é necessário que instituições de ensino e serviços hospitalares invistam na capacitação prática em leitura de curvas ventilatórias, interpretação clínica e ajuste de parâmetros.

É imprescindível também reconhecer que a primeira resposta diante de uma assincronia não deve ser aumentar a sedação. Ao contrário, ajustes finos nos parâmetros ventilatórios muitas vezes são suficientes para promover uma interação mais harmônica entre paciente e ventilador, preservando a função muscular e acelerando o desmame. Quando estratégias não invasivas falham, a curarização ainda pode ser considerada, mas sempre como última alternativa.

Diante do atual cenário, este artigo faz um apelo: que a assincronia deixe de ser invisível. Que ela seja rastreada sistematicamente, documentada, discutida em rounds multiprofissionais e considerada nos protocolos de ventilação. Enquanto aguardamos estudos clínicos robustos que comprovem os benefícios de sua correção, a observação atenta e a conduta baseada em Fisiologia e bom senso permanecem as melhores ferramentas para proteger o paciente dos efeitos silenciosos, porém, devastadores, da assincronia.

Portanto a assincronia paciente-ventilador não é apenas um detalhe técnico – é um marcador de qualidade do cuidado em terapia intensiva. Ignorá-la é perpetuar riscos evitáveis. Reconhecê-la e agir é exercer a Fisioterapia e a Medicina Intensiva em sua plenitude ética e científica.

Profª. Drª. Amanda Souza Araújo Almeida
Docente do Curso de Fisioterapia do Centro Universitário Ateneu
Doutora e mestra em Ciências Médico-Cirúrgicas, especialista em Pesquisa Científica, em Cuidados Paliativos, em Fisioterapia Respiratória, em Fisiologia do Exercício Físico e em Terapia Intensiva e graduada em Fisioterapia.

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